O medo que existe não é de você ou de mim. É do amanhã que nos espera na esquina, que torna efêmero todo gesto de conquista e prazer…
No dia seguinte, Jota me acorda com café na cama. Ele tinha uma reunião importante, mas desmarcou para ficar comigo. Ele nunca tinha feito isso antes. É bastante obstinado com seu trabalho, desde que assumiu o posto de CEO da Tevron tv, a emissora de Canal Fechado criada pelo pai, o poderoso José Tavares.
Quando jovem, ele assumiu o papel de apresentador do programa de Esportes Radicais, feito especialmente para ele, que é viciado em adrenalina. Garoto rico, nascido e criado com todos os recursos e cartões de crédito capazes de comprar tudo e todos, Jota Jr sofre há anos de uma doença incurável: a “limitless disease”.
Essa doença, certamente herdada do seu pai, mas com uma boa contribuição da sua mãe, a socialite paulista Elisabeth Spielberg, dona da famosa rede de Estética BB Spa & Estética, conseguiu fazer do meu Jota uma pessoa totalmente compulsiva pelo que a vida tem a dar nos seus extremos mais absolutos. Ele não podia ser bom ou muito bom em algo, tinha que ser o melhor. O segundo lugar na vida não estava destinado a ele, somente o primeiro lugar serviria. Foi criado para isto: para ter sucesso absoluto e representar o ponto de equilíbrio perfeito da sua desestruturada família rica. E se não conseguisse o primeiro lugar? Comprava um. De primeira classe. Foi assim que o Jota suportou ver seu pai trocar de parceiras por toda a sua vida como quem troca de roupas. Foi assim, fazendo todos os esportes mais doidos e perigosos, que ele suportou ver sua mãe se afundar em drogas e tratamentos estéticos. E foi assim que ele, um menino perdido, encontrou-se no meio de todo o caos da sua vida: nos extremos.
Um dia, estava super deprimido e afundava seu nariz em carreiras intermináveis de cocaína, no outro, estava feliz, tão feliz que tinha que desafiar a natureza, virar de cabeça para baixo em busca de novos recordes, de novos desafios. Acho que ele desafiou a vida, por não gostar realmente dela, da forma que ela se apresentava a ele. E desafia-a todos os dias, até hoje. O medo é seu maior amigo, é “ele” quem lhe dá coragem para seguir em frente. Sem medo, o Jota fica muito pequeno, perdido. O medo é seu alimento, sua força para continuar a desafiar sua “maldita sorte”.
Mas ser o primeiro em tudo nem sempre esteve nas metas devida do conturbado “José Francischini Tavares Júnior”… Jota revoltou-se durante a adolescência e passou a negar todas as possibilidades que a vida lhe oferecia. Nesse período, não queria ser o melhor e, aparentemente, contentava-se em não ser nada, um ninguém no meio da multidão. Acho que foi sua forma de se expressar negativamente a todo o luxo que sua família tinha a lhe oferecer. Uma forma de dizer “não” às referências de seus pais. Pediu para sair do colégio “Beit Yaacov”, um dos mais conceituados colégios judaicos de São Paulo, tradição de estudos da sua família materna, e terminou os estudos em um colégio supletivo de segunda linha, especializado em filhos ricos mimados que não gostavam de estudar. Depois concluiu a faculdade de administração de empresas em uma Universidade particular, também mediana, e assim conseguiu se formar, quase que por sorte. Nesse período, pouco estudou e só conseguiu dedicar-se aos esportes e a todo tipo de esteroide que pudesse lhe inflar os músculos. Sua sorte foi a excelente base de conteúdo, que possuía dos estudos até os 14 anos em São Paulo, e sua ampla bagagem cultural adquirida durante a infância, que lhe possibilitaram destacar-se dos outros alunos, apesar de seu desinteresse pelas matérias didáticas.
Viveu nesse momento em uma realidade paralela, onde todo e qualquer subterfúgio fútil sobressaía-se à aventura de explorar culturas antigas e toda forma de arte reconhecida. Mais valiam-lhe as obras criadas a partir de lixo reciclado feitas por ex-indigentes drogados, que tentavam refazer a vida criando valor a partir do nada. Era um nada que preenchia o corpo musculoso do surfista de Maresias, um monte de ar com essência de haxixe, skank e maconha de primeira que inflavam os pulmões dele, que nunca mesmo soube diferenciar a qualidade de um Malbec e de um Shyraz…
E, com isso, foi levando sua via de playboy paulista, curtindo noitadas alucinantes, viagens à casa de Angra da família, com direito a passeios no “Spielberg III”, um iate de última geração, comprado pelo pai, em uma feira náutica de Milão, e trazido para o Brasil, em uma trajetória que mais parecia uma saga do filme “O Senhor dos Anéis”… Passava temporadas na Europa, curtindo as praias da costa espanhola e tocando como DJ, em suas próprias festas promovidas em sua casa de Ibiza, na Ilha de Mallorca.
Passou anos escondendo-se nessa redoma, assumindo uma identidade que não lhe pertencia. No fundo, estava ansioso para o dia em que seria chamado de volta à vida, retornando da escuridão do seu marasmo para uma vida ativa e produtiva. Tinha raiva de seu pai e, ao mesmo tempo, tinha vontade de ser igual a ele. Sua raiva era fruto de um idealismo. Amava-o tanto, tanto, que não conseguia assumir gostos diferentes dos dele. Esperava ansioso pelo dia em que pudesse assumir a identidade dele, seu mestre.
Quando José Tavares faleceu, Jota tinha somente 26 anos de idade. Como não tinha irmãos, foi obrigado a assumir o posto de CEO da emissora. Com tanta responsabilidade desde cedo, ele se tornou uma pessoa excêntrica, um jovem milionário, lindo e esportista.
Dentre suas fraquezas, destacava-se a sua limitação cultural, em função da sua negação aos estudos para levar uma vida “fora dos padrões exigidos”. Entendeu que precisava mudar. E mudou. Foi obrigado a absorver doze anos de cultura europeia em dois anos de vida intensa. Passou um ano na Inglaterra, no apartamento de um tio, para se recuperar da perda do pai e receber um pouco de cultura inglesa. Precisava reter algum conhecimento que lhe garantisse uma entrada para frequentar as altas rodas sociais europeias. Dinheiro tinha, faltava-lhe status, polimento. Sabia o básico que herdara da sua mãe, uma socialite paulistana proveniente de uma “família de pedigree judaica”, mas, ainda assim, fazia-lhe falta o código para acessar a “nata” da sociedade. Refez-se. Aprendeu a falar como um lord, a negociar como um libanês e a portar-se como um empresário.
Aprendeu a ser um homem de sucesso, escondendo dentro de si toda a sua fragilidade emocional e despreparo. Ainda hoje, antes de uma reunião importante, suas mãos suam e falta-lhe ar. Resolve o assunto em seu banheiro com uma fina carreira de cocaína. Mantém-se sóbrio com um Blue Label sem gelo nas mãos. Aprendeu a controlar-se com seu tio, que o introduziu no mundo dos adultos bem-nascidos. E aprendeu a ser homem com sua tia, que o introduziu nas orgias secretas da alta sociedade promíscua inglesa.
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Voltando ao café…
Sento-me na cama esperando a bandeja com os meus quitutes preferidos: café preto bem forte e amargo, sem nenhuma gota de açúcar, tapioca com queijo amarelo e ovos mexidos com muita manteiga e sal. Realmente meu marido está se superando… ao lado está um copinho de licor com uma pequena margarida, recém-tirada do nosso vaso de margaridas. Nunca fui muito sentimental, mas esse gesto me deixa mesmo comovida. A nossa pequena e ordinária flor… ao lado mais uma de suas poesias:
“Efêmero
O medo que existe não é de você ou de mim.
É do amanhã que nos espera na esquina,
que torna efêmero todo gesto de conquista e prazer.
O sexo com gosto de imoral só é imoral quando existem novos caminhos a serem explorados.
E esses caminhos me levam a todos os cantos do seu corpo, beijando cada centímetro mais indecente do seu espaço mais privado.
Nas horas que antecedem o dia seguinte, não existem barreiras ou limitações para tudo que é passageiro.
Mas sempre antes do dia amanhecer…”
E aí eu me derreto toda… esqueço-me do lado cafajeste, do sexo sacana, sem pudores e precauções físicas ou psicológicas. Esqueço tudo que é imoral e indecente. E só consigo pensar nele, que é minha vida, mesmo que uma vida assim tão complicada…
O dia passa sem pressa e nos divertimos na cama, sem sexo, só com carinhos e cafunés. Há tanto tempo que não fazíamos isso! Até de “Larica” ele me chamou por algumas vezes… o único apelido que ele conseguiu me colocar para os momentos em que estamos chapados de maconha e eu devoro tudo o que há na nossa geladeira… E agora era justamente um desses momentos:
– Larica, por que você não volta para as suas aulas de balé? Você fica tão mais relaxada quando faz balé… mais serena, mais tranquila. E mais gostosa também… – ele ri.
– Não estou com ânimo para dançar, Jota… não consigo nem fazer um “demi plie”… Acho que, se tentar, eu caio de quatro.
– Nesse caso, eu vou adorar! – Nós dois rimos.
– Seu bobo! — E assim seguiu o nosso dia: rindo de nós mesmos, unidos e felizes.
Realmente gostaria de voltar para o balé. Vou falar com a Carlota sobre a minha volta… talvez ela me dê uma turma para monitorar ou mesmo ensinar. Mamãe é louca por balé e música clássica. Colocou-me nas aulas de balé desde pequena. Lembro-me de que eu gostava das aulas, mas, depois que a “moça” começou a aparecer e observar-me, comecei a não querer mais frequentar as aulas.
Mamãe obrigava-me a ir e chegou a brigar na academia por causa da misteriosa mulher. Essa mulher nunca foi encontrada. Acharam que eu inventara. Até um dia em que ela apareceu de novo, depois de um tempo grande sem me ver, e dançou uma música inteira comigo. A roupa dela era preta e não usava sapatilhas. Mas dançava divinamente, parecia inclusive flutuar. Encantei-me por ela e, desde esse dia, nunca mais tive medo. Combinamos de nos encontrar apenas nos nossos sonhos para que eu não parecesse “maluca” aos olhos de todos. Há tempos, entretanto, que não sonho com ela. Não sei para onde foi ou o que aconteceu. Não sei se o meu aborto a afastou dos meus sonhos, mas sinto falta dela.
No final do dia, Jota me sugere marcarmos um jantar no próximo final de semana com um casal de amigos “straight”, ou seja, que não tiveram nenhuma intimidade sexual conosco. Vai ser bom, afinal é uma tentativa de voltarmos a ter uma rotina “normal”…
Vamos dormir como dois irmãos, sem nada de sexo. Melhor assim… não estou pronta para retomar a minha vida sexual. Tudo é muito recente e foi fruto de muita putaria sem limites… quero esperar um pouco mais para retomar essa parte da minha vida. Pelo menos até a minha libido voltar (se é que ela um dia vai voltar…).
Próxima leitura -> Capítulo 4
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Trilha Sonora: Take Me to Church – Hozier