top of page

Capítulo de Abertura

2006 Anna Lara — 26 anos


Chove muito. Anna Lara está tomando banho em seu modo contemplativo. Sei que está triste… espero que termine para começarmos a fazer nossa maquiagem. Mas ela não quer se maquiar hoje… há um tempo que não quer! Insisto e ela acaba cedendo… concorda em fazer ao menos o contorno dos olhos, ressaltando a parte inferior das pálpebras com lápis preto. Nos arrumamos calmamente, sempre em silêncio. Sinto sua angústia ao tocar seu ventre. Um filho deformado! Como será a reação do pai da Anna ao saber que a sua filha vai fazer um aborto?? E a Luiza, mãe da Anna Lara? Acho que ela vai ficar em estado de choque quando souber… ela está louca para ser avó…


Olho o relógio: 7h48, estamos atrasadas! Grito para que Anna acelere. Ela imediatamente coloca seu tênis Steven Madden de cano alto preto e prende o cabelo em um rabo de cavalo descuidado. Agarra sua bolsa Goyard vermelha e sai em direção à porta. Descemos pelo elevador e logo o cheiro de mar, disfarçado pela forte chuva que cai, nos envolve e nos conforta. Moramos na Delfim Moreira, uma das ruas mais caras do Rio de Janeiro, em frente à praia, na altura do Posto 10. Lembro-me sempre deste prédio enorme que, muitas vezes, tapava os raios de sol que cobriam o corpo malhado da Anna Lara, durante as últimas horas de praia. Lembro-me de ela desejar morar aqui, exatamente neste prédio. Só que, nas minhas lembranças, este prédio era muito mais alto e muito mais sedutor. Nelas, a minha menina não era uma assassina. E também não era uma escrava sexual do marido. Era uma mulher livre e feliz.


Logo o Honda Civic preto se aproxima do edifício e a tia Amélia, providencialmente, baixa o vidro traseiro, nos convidando a entrar. Acomodamo-nos atrás rapidamente e seguimos para o Centro de Quimbanda onde tia Amélia trabalha. No caminho, sinto que Anna Lara está tensa, incomodada. Admira a paisagem quase rural como se não fosse ela, parecendo não estar em sintonia consigo mesma… tento me aproximar, mas a sinto distante. Sei que está com medo; por este motivo, prefiro me calar e aguardar.


Tia Amélia começa a falar da irmã Luíza e eu temo que isso novamente não termine bem… ela começa a falar das “coisas” que estão perdidas no tempo e no espaço, que dizem respeito à sua família. Que Anna Lara era a “filha” que ela não conseguira ter e que deveria cuidar dela até quando tivesse um último sopro de vida. Anna Lara, mais uma vez, não quis ouvir o que sua tia tinha a dizer e limitou-se a olhar para o outro lado. Com um meio sorriso fechado no rosto enrugado, tia Amélia voltou a olhar para a frente, com o olhar fixo no alto da cabeça de seu motorista, Agnaldo.


Na verdade, Agnaldo era muito mais do que um simples motorista… ele era seu homem. Era seu amante, seu amor. Era filho de Rosinha, a empregada-escudeira de dona Lia, que acompanhou a mãe de Amélia e Luíza até seus últimos dias. Preta Gorda, era a “bá” das filhas de dona Lia e, depois, virou a “bá” de Anna Lara. Amou-as tanto quanto amou Agnaldo. Era dedicada; mais que isso, era devota fiel de dona Lia. Seguia-a a todos os lados, em todos os terreiros em que pisava, em todos os rituais que cumpria.


Meses depois da morte da dona Lia, Rosinha adoeceu e faleceu. Morreu de desgosto de viver sem a amada dona para idolatrar. Segurou as lágrimas em seu enterro e fez cumprir o que prometera à patroa, horas antes de ela cruzar o mar dos mortos. Fez-se a “profecia da vida”, enquanto vida havia para ser profetizada. Deixou o séquito de parasitas à espreita da morte, aguardando o próximo sinal de redenção de sua mestra. Aos “pretos velhos”, restou-lhes aceitar e aguardar, no Reino dos Céus, a prestação de contas que Rosinha haveria de fazer em sua hora de subida. Mais tarde, foi Agnaldo quem vestiu a roupa da mãe e, em um encanto de dois Deuses Umbandistas, revelou-se “preto velho” em feitiços e “malandro” em conquistas amorosas. Alguns meses após a passagem da mãe, já não dormia mais no quarto dos fundos. Havia se mudado para o aposento principal, deleitando-se com sua senhora, antes companheira de brincadeiras na Pracinha da Igreja Nossa Senhora da Paz, hoje parceira de cama, com direito a todos os subterfúgios que uma senhora de idade pode clamar.


Não é, todavia, seu companheiro de riqueza, pois desfruta o luxo sob a premissa do sexo. Abraça-se com a carne, jamais com a riqueza. É serviçal igual sua mãe. Nasceu para servir, seja o serviço o mérito que for.


Uma hora depois, chegamos ao “centro”. Fica em Alcântara, em um subúrbio feio, sujo e pobre. Subimos um morro enlameado até chegar a uma construção recém-terminada, com tijolos aparentes e teto de telhas de alumínio. É um galpão enorme, rodeado por uma cerca de arame que delimita o espaço do terreno. Ao lado, existe uma casinha bem pequena, de onde saem mulheres vestidas com saias brancas de renda, por cima das calças, e blusas brancas largas, adornadas com vários colares de contas e sementes.


Percebo logo o olhar de animosidade do homem gordo com chapéu de palha que está à frente do portão. Em uma das mãos, segura uma garrafa de aguardente e, na outra, leva um cigarro que se mantém aceso mesmo com a chuva que insiste em cair. Tia Amélia faz um pequeno gesto de saudação, inclinando parcialmente a cabeça, como se pedisse alguma espécie de permissão para entrar. Passamos por ele e seguimos em direção ao grande galpão. Ao entrar, sinto um calafrio imediato e minhas mãos e pés começam a ficar dormentes. Tento me controlar porque a Anna Lara precisa de mim. Duas mulheres vestidas de preto e vermelho aproximam-se de nós. Não parecem muito contentes com a minha presença. Uma das mulheres, com longos cabelos negros e enormes cílios, me diz:

– Vá embora imediatamente. Sua presença não é bem-vinda aqui. Vá enquanto pode.Um calafrio estremece todo meu corpo. Dou um passo para o lado e seguro o braço de Anna Lara. Quase sussurrando em seu ouvido, digo:

– Anna Lara, vamos embora. Este lugar não é nada bom! Não estou com um bom pressentimento, algo está estranho… essas pessoas, essa energia… não sei. Estou com medo! – Desço minhas mãos pelo braço de Anna Lara atétocar em sua mão. Está gelada. Não recebo nenhuma resposta dela… é como se não me escutasse.

A outra mulher, mais baixa, com cabelos claros e nariz protuberante, me diz:

– Ela não vai te escutar, não adianta insistir. Vá embora agora ou vai ser pior para você!

E eu respondo:

– Quanta arrogância! Como podem me mandar ir embora!? Sou a melhor amiga da Anna Lara, sempre estive ao seu lado e não vou deixá-la nunca!

– Nesse momento, sinto uma punhalada na nuca e tudo se escurece.

Quando acordo, percebo que estou dentro de um quarto minúsculo com um pequeno altar ao fundo, cheio de velas vermelhas e imagens esquisitas. Sentado à frente do altar está um senhor negro, bem magro e com unhas enormes. Lentamente ele se vira, encara-me com seus olhos vermelhos e pergunta:

– O que você está fazendo aqui?

– Sou amiga da Anna Lara, sobrinha da tia Amélia. Eu vim acompanhá-la…

Nesse momento, o homem negro se levanta, deixando transparecer toda sua magreza esquelética, com seus mais de dois metros de altura, e me agarra pelo pescoço. Sinto suas enormes unhas negras invadirem a pele do meu pescoço e alcançarem a minha carne. Um caminho de sangue começa a correr em direção às minhas costas e colo… a sensação que tenho é de que vou sufocar… falta-me ar…

A porta se abre repentinamente, deixando a luz entrar e fazendo com que esse monstro me largue por alguns segundos. É uma das mulheres “vestidas de branco”, que traz uma bacia de barro cheia de farinha com uma galinha morta, ao centro, banhada com muito sangue. A cena me dá náuseas… a mulher olha para o homem negro com respeito e, ao mesmo tempo, com firmeza, pede licença e deposita a bacia embaixo do “altar”. Aproveito esse intervalo para escapar. Corro para fora da casinha e entro no galpão em busca da Anna Lara. Ela está no meio do salão, cercada por várias pessoas com roupas brancas em uma espécie de “ritual”. Adentro a roda e abraço minha menina com toda força. Peço para ela ir embora, que isso não vai fazer bem ao filho dela, mas ela continua sem me ouvir, parece estar em um estado de transe… nesse momento, “Mãe Dalva”, a médium principal deste Centro, se aproxima. Com uma expressão de descontentamento, ela me cumprimenta e, sem mexer a boca, me diz:

– Está na hora de você se afastar. Não se preocupe, ela estará bem ancorada nesta casa de luz.

– Não! Eu não vou deixar a Anna Lara nunca! Eu tenho que protegê-la!

– Você já fez muitos estragos por aqui! Se hoje ela está carregando um filho deformado é por sua culpa, que a deixou seduzir na dimensão sexual. Você é a culpada! Incentivou-a a transar para satisfazer suas próprias necessidades carnais, quando deveria tê-la protegido. Não vamos permitir que você permaneça ao lado dela. A partir de agora, você vai ficar aprisionada na casa de Exu, trancada e amarrada. Vamos eliminar todas as impurezas desta “filha”, começando por esse ser maldito que ela carrega.

Nesse momento, abraço Anna Lara com todas as minhas forças, temendo o momento em que essas pessoas vestidas de branco se aproximem de nós para nos afastar. Para minha surpresa, elas não se aproximam, apenas nos olham. De repente, pessoas deformadas, com roupas pretas e rasgadas, saem de trás da “Mãe Dalva” e caminham de forma enviesada em nossa direção. Sinto medo, muito medo. Em um segundo estão todos me segurando e me arrastando em direção ao altar. Um deles abre a cortina vermelha de veludo localizada na parte baixa do altar e vejo uma caixa velha feita de madeira, fechada com um pino enferrujado. Uma das “criaturas” retira o pino e abre a caixa. Sou empurrada para dentro sem conseguir reagir. Parece que minhas forças se acabaram. Estou imóvel, sem sentir meu corpo. Inerte em uma imensidão negra. Pela fresta da caixa, observo a minha pequena e doce menina com cara assustada. Uma lágrima começa a escorrer pelo meu rosto e de repente me lembro…

Não sou humana. Não sou de “luz”. Não trabalho na esfera da claridade. Trabalho contra as trevas, na escuridão. Movimento a energia mais básica, o chacra sexual, o vermelho, o da vida terrena. Sou energia em forma de arquétipo feminino e sedutor. Sou uma alma atrasada em busca de luz. Sou da rua, das esquinas, dos becos. Sou uma puta, vulgo, “pomba-gira”.

Sou Maria Scarlet.

Próxima leitura -> Capítulo 1

***

Trilha Sonora: Black – Pearl Jam


Posts recentes

Ver tudo

Prazer

bottom of page