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Capítulo 4

Penso se vou amargar o meu gosto pela vida, se vou quebrando em todas as esquinas e transformando-me na metade do que fui um dia. Tenho medo de enlouquecer.

No dia seguinte, mamãe resolve me fazer uma visita; ela vai passar o dia comigo e me ajudar a desfazer das coisas do Miguel. Percebo sua surpresa ao se deparar com o quarto completo de um neto que ela nem sabia que estava a caminho. Envergonho-me por não ter contado sobre meu filho e por já ter feito todo seu enxoval sem a presença dela… a cena me dá muita tristeza e me remete a todo o horror que estou vivendo…

Ela se aproxima de mim, com seus cabelos crespos e claros envolvendo seu rosto fino e ovalado, segura minha mão com toda força e diz:

– Minha filha, você tem que ser forte para superar este momento de dor… sei o quanto você está sofrendo. Eu também já perdi uma filha. E uma filha linda, cheia de vida… sua irmã. Não quero fazê-la sofrer mais do que você já está sofrendo, mas quero lembrar apenas que a vida continua, Anna Lara. Depois da morte da Caroline, eu não sabia o que fazer… pensei até em me matar, mas o Marco Aurélio estava do meu lado, sempre. Ele nunca me deixou desamparada. Ele me mostrou que devíamos continuar a nossa caminhada. E hoje vivemos na Igreja. Foi a nossa fé que nos salvou. A fé em Cristo, Nosso Senhor. Só Ele, filha. Só Ele, o Salvador, poderá tirá-la desse sofrimento…

– Mãe, obrigada pelas lindas palavras! Mas eu não vou me converter, eu não tenho religião e prefiro continuar assim. Não duvido da sua fé, mas não quero que você, de novo, tente mudar a minha falta de fé…

– Minha filha, só falo isso para o seu bem. Sei que você está sob forte influência espiritual negativa… – Uma raiva repentina toma conta de mim e a minha dor se transforma momentaneamente em ódio. Ódio da vida e ódio dela, minha mãe evangélica, que não entende

que neste momento de dor o que eu quero é silêncio.

– Você “matou” a sua filha??? Matou a Caroline?

– Não, mas…

– Então, não me fale que você entende o que eu estou sentindo, porque você simplesmente não entende! Meu filho não morreu, mãe! Eu o matei. Matei meu próprio filho porque ele era deformado e eu não ia conseguir viver a minha vida inteira cuidando de um aleijado! Não consegui suportar esse fardo e me livrei dele! E não posso me sentir vítima porque eu sou a culpada, entende? Então não, não quero arrumar este quarto, não quero doar nada que tem aqui. Eu quero queimar tudo, para que o inferno se encarregue de conduzir o resto das coisas do Miguel para onde ele está: no inferno, que foi o endereço que eu dei para ele. O inferno!

Minha mãe se assusta com minha reação e, desviando o olhar, baixa suavemente a cabeça e começa a orar em tom bem baixo o “Pai Nosso”. Essa atitude consegue me enervar mais ainda e, em um impulso repentino, começo a repetir a palavra “inferno” diversas vezes, só para poder enfrentar minha mãe e amedrontá-la mais ainda dentro dessa perspectiva de que eu estou “possuída”. E grito bem alto:

– Quero que o inferno mostre suas portas porque eu não tenho mais medo delas! Eu não tenho medo, mãe. Não tenho medo do inferno porque é lá que vive o meu filho. Foi lá que o deixei e é lá que eu tenho que viver!

Minha mãe não resiste e, com um choro incontrolável, sai do quarto e da minha casa. Passo o resto do dia sem saber dela, mas realmente não me importo. Sabia que esse desabafo a levaria para longe de mim, mas, neste momento, longe é onde eu quero estar de todas as pessoas que sejam íntimas da minha vida.

O telefone toca, é a tia Amélia. De novo. Penso em como pessoas velhas adquirem o dom da insistência. Lembro-me dela bem mais despachada, bem mais na dela. Acho que o tempo e a solidão a transformaram em uma pessoa carente. Penso se algum dia vou ficar como ela, velha, triste, sozinha. Penso se vou amargar o meu gosto pela vida, se vou quebrando em todas as esquinas e transformando-me na metade doque fui um dia. Tenho medo de enlouquecer. De sair da minha sanidade quase normal e transformar-me em uma mulher paranoica, dependente de remédios para dormir, para relaxar e para respirar. De certa forma, para respirar já tenho meu companheiro “Aerolin”, que utilizo em vários momentos do dia, agora mais ainda, a cada dor ou a cada lembrança que acelere minha pulsação, a ponto de não mais conseguir absorver o ar que tenta adentrar o meu corpo. As vitórias das minhas angústias costumavam ser pontuais, mas transformaram-se em rotina desde que embarquei nesse caminho sem volta…

As vitórias das minhas angústias costumavam ser pontuais, mas transformaram-se em rotina desde que embarquei nesse caminho sem volta…

Jota fica sabendo da briga com minha mãe e tenta me consolar. Percebo que ele sente pena de mim porque sabe que o meu relacionamento com a minha mãe é complicado. Ou talvez sinta pena porque sabe que ele é o grande causador de toda a minha desgraça. Se não fosse por ele e sua louca obsessão por formas alternativas de atingir um prazer pleno, eu poderia estar melhor, talvez mãe de um filho saudável e vivo, talvez eu fosse uma pessoa “normal”.

Elisabeth aparece no dia seguinte — foi o Jota que a mandou, tenho certeza! — e me convida para fazermos umas compras em São Paulo. A ideia é embarcarmos na primeira ponte aérea e seguirmos com Renato — seu motorista — rumo a Oscar Freire para as compras. Volta e meia Elisabeth me busca para fazer compras em São Paulo. Como toda boa paulista metida, ela se recusa a sair por Ipanema com medo de ser assaltada. Acredita que o Rio não passa de uma cidade praiana e subdesenvolvida. Na verdade, sair para fazer compras é tudo o que eu não quero neste momento, mas Elisabeth está sendo tão gentil comigo que fico constrangida em não aceitar seu convite. E pensar que uma nova bolsa da Chanel fará parte do cenário do meu closet deixa-me realmente sem alternativa…

Saindo do elevador, encontro minha mãe em pé, esperando para subir. Ela me dá um longo abraço, me pede desculpas por termos brigado e diz que vai estar ao meu lado neste momento. Ao mesmo tempo que a amo demais, sinto-a distante de mim sempre que preciso dela. Mas o fato é que desta vez ela voltou e desculpou-se.

Desta vez ela está, ao menos, tentando ficar ao meu lado… desando a chorar e, em uma cena comovente e jamais imaginada, nós três nos abraçamos e choramos juntas. Elisabeth propõe, então, entre lágrimas cristalinas e pretas — pelo efeito devastador da sua carregada máscara para os cílios —, que saiamos as três juntas, em direção ao Fashion Mall, o único shopping que ela tolera, por ser mais vazio que os outros shoppings do Rio.

Fazer compras com a minha mãe e a Elisabeth juntas será mesmo um desafio! Minha mãe é muito cafona para se arrumar… adora cores fortes e estampas extravagantes. No começo do meu relacionamento com o Jota, eu sentia um pouco de vergonha quando a mãe do Jota se reunia conosco, em eventos familiares… Elisabeth, mãe do Jota, é muito chique: adora a cor “bege”, e moda para ela se resume a tons pastéis. Ela é apresentadora do programa de Beleza & Saúde do Canal Trevon tv e, por isso, está sempre em contato com várias celebridades e pessoas do meio artístico. Além disso, é herdeira de uma das maiores fortunas de São Paulo, da família paulista de origem judaica “Spielberg”, o que a torna uma socialite famosa e presença obrigatória nas festas mais badaladas do eixo Rio-São Paulo.

Minha mãe é diametralmente o oposto da Elisabeth. Ela não se encaixa em nenhuma conversa sobre beleza, moda e cultura contemporânea. O único tópico que a minha mãe domina é com relação aos idiomas. Minha mãe é formada em letras e dá aulas de inglês e espanhol em um conhecido curso de idiomas, além de aulas particulares de francês, sua maior paixão.

Sempre que estão juntas, minha mãe faz questão de criticar Elisabeth, ainda que de forma subliminar… são vários comentários negativos sobre a futilidade da vida dos ricos e famosos, do consumismo exacerbado por marcas e símbolos de status, e da facilidade extrema que algumas pessoas têm para “ganhar a vida”, ou como minha mãe prefere dizer: “ter a vida ganha desde sempre”.

Mesmo com todos esses “contras”, o passeio acabou sendo muito agradável! Fiquei muito feliz por ter a minha mãe ao meu lado e, apesar de toda a caretice dela, há tempos sonho com esse momento… Ela estava tão doce que nem criticou minhas escolhas de consumo… comprei várias peças pretas e uma calça estilo “safari”, com vários bolsos e estampa militar.

O meu estilo sempre foi o inverso da “boa moça”. Desde pequena, depois que aconteceram essas aparições, tentei fugir do estereótipo da “menina que gosta de balé”… por isso recorri à cor preta, que amo. E, para fazer companhia às peças pretas, eu uso as cores verde-musgo e cinza, sempre combinando com minha coleção de 28 jeans True Religion. Para finalizar o passeio, Elisabeth fez questão de me presentear com um conjunto de três bolsas de couro pretas, de diferentes tamanhos, da mesma loja. Essa é mais uma das excentricidades da minha sogra milionária: a mania de comprar sempre três, quatro ou mais produtos da mesma linha, com distintos detalhes, tamanhos ou cores.

Próxima leitura -> Capítulo 5

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